Alguns pacientes já me perguntaram, ainda me perguntam e acredito que sempre perguntarão se é muito difícil ser psiquiatra. Em seguida a esta pergunta, normalmente justificam-na com base na idéia de que deve ser muito difícil ouvir pessoas com problemas o dia todo, que devo sair “carregado” no fim do dia. Muitos ainda complementam dizendo que jamais fariam coisa parecida e que não aguentariam uma profissão assim. Imagino que o leitor possa concordar com tais afirmações e que possa estar bem curioso para saber como um psiquiatra lida com tudo isso de forma a levar uma vida pessoal comum, não ficar “louco” e não “surtar” (as palavras entre aspas foram usadas por pacientes, em tom de brincadeira, durante consultas mais descontraídas).
Ao longo de minha carreira como médico psiquiatra já respondi a esta pergunta de muitas formas diferentes e acredito que continuarei mudando minha resposta, conforme os anos passam e adquiro experiência como médico e como ser humano. E essa resposta é somente a minha, pois cada profissional tem a sua. Então, aqui falo apenas por mim neste texto e não em nome da classe médica ou de uma especialidade. Trata-se apenas de um texto de caráter pessoal.
Bom, esta pergunta me leva necessariamente a pensar o motivo pelo qual escolhi medicina. E, na época da adolescência, o motivo era bem inocente… Queria ajudar pessoas. Ah, sim, e gostava de biologia. Aqui vale uma observação. Na época do meu segundo grau era dada muita importância às matérias que nós gostávamos, para definir a escolha profissional de alguém. Pessoalmente hoje acho que o gosto por matérias na escola tem importância secundária na escolha da profissão, se alguma. Na minha humilde opinião deveria ser dada mais importância ao sentido que aquele adolescente enxerga na sua própria vida, em termos de o que o faria feliz, o que o deixaria realizado ao fim de um dia de trabalho e o que faria com que, ao fim de uma vida, pudesse olhar para trás e sentir-se orgulhoso de sua obra. Claro que a escolha da profissão não cumpre, sozinha, o papel de realização pessoal plena. Mas, a meu ver, ocupar-se com algo com a qual a pessoa enxerga um propósito claro e que faz sentido para si mesmo ajuda bastante! Afinal, ocupamos boa parte de nosso tempo trabalhando, em nossa cultura atual.
Bom, respondendo finalmente à pergunta e sem mais divagações, escolhi medicina porque queria ajudar pessoas e achava que este era um bom caminho. De fato, o é. Mas acabou se revelando também um caminho contínuo de transformação de minha personalidade, de meus valores pessoais e da forma como passei a encarar a vida. Vivenciar o sofrimento tão de perto, de doentes e familiares, me fez mudar a perspectiva de olhar para a vida e valorizar muito ter saúde para poder conseguir viver. E viver passou a ser algo mais importante. Passou a ser realizar sonhos, não perder tempo, deixar de lado coisas sem importância e pequenos problemas e ir atrás, com pressa, do que realmente interessa.
Durante minha faculdade, passei toda ela apaixonado pela medicina em todos os estágios… Mudava de especialidade a cada novo estágio e já quis ser cirurgião pediátrico, pediatra, clínico geral, neurologista, patologista, radiologista, reumatologista, oncologista, neurocirurgião, otorrinolaringologista, ortopedista, cirurgião geral… Enfim, todas as áreas causavam em mim um deslumbramento mágico nas formas de ajudar as pessoas. Mas aqui cabe um parênteses… Durante boa parte da faculdade acompanhei o grupo de estudo de psiquiatria, por achar extremamente interessante… embora curiosamente nunca tinha parado para pensar seriamente nesta especialidade como uma escolha para mim…
Mas, ao final do curso, precisava escolher apenas uma especialidade. E uma experiência de pronto-socorro me fez mudar meus planos.
Esta experiência foi a seguinte… Estava de plantão no meu sexto ano de medicina no Pronto-Socorro da Santa Casa de São Paulo, na clínica médica. Naquela ocasião, deu entrada no pronto-socorro um paciente homem, obeso, fumante, empresário, pai de família, com cerca de 45 anos. Apresentava dores fortes no peito, sudorese e o Eletrocardiograma revelou um evidente infarto agudo do miocárdio. Naquele dia, eu e toda a equipe do Hospital fizemos tudo o que estava ao alcance da medicina moderna, incluindo medicações que dissolvem o coágulo das artérias, cateterismo e tudo o mais. Deu certo! Salvamos uma vida! O paciente e a família ficaram muito agradecidos e, depois de alguns dias, foram embora felizes. O paciente recebeu medicações e orientação de procurar um cardiologista. Naquele momento, me senti muito bem. Tive a sensação de missão cumprida e de que estava na profissão certa!
Semanas depois, também no meu plantão, infelizmente o mesmo paciente retorna ao PS. Por coincidência, foi novamente atendido por mim. Desta vez, infelizmente, o fim foi diferente e o paciente acabou falecendo. Eu e toda equipe nos sentimos péssimos, derrotados e culpados pela perda de um paciente. Normalmente isso sempre acontece quando perdemos um paciente, principalmente quando o mesmo é jovem e com grande potencial de vida pela frente… Sim, os médicos sentem muita culpa nessas situações.
Esta situação me fez repensar muita coisa em minha vida, incluindo a escolha de profissão e fiquei meio desnorteado por um tempo… Como poderia a medicina estar tão avançada para cuidar de infartos e perdermos um paciente semanas depois de o mesmo ter recebido alta, sem nenhum dano sequelar? Será que de fato tínhamos resolvido o problema do paciente naquela primeira vez que ele veio ao PS? E, a pergunta que estaria por trás de todas: qual então seria o objetivo de ser médico? Para que se presta a medicina?
Apesar de reconhecer todo o avanço da medicina em todas as especialidades e considerá-las igualmente importantes, alguma coisa me incomodava naquela história.
Pensei naquele senhor por muitas semanas… Refleti sobre seus hábitos de vida, suas escolhas que o levaram a ter um infarto tão jovem. E pensei que a ideia de ajudar as pessoas, para mim, era mais do que intervir pontualmente em um sintoma ou órgão ou sistema fisiológico.
Queria saber mais daquela pessoa que está ali pedindo ajuda. Queria saber sua história, suas escolhas, do que a fez sofrer profundamente. Naquele momento, a Psiquiatria me pareceu uma escolha natural… E foi o que escolhi para mim, embora também conheça ótimos colegas médicos de outras especialidades que também compartilham deste interesse pelo doente em si e não só pela doença.
Hoje, minha resposta à pergunta dos pacientes tem sido a de que ajudar da forma que considero com mais sentido para mim, nos sofrimentos emocionais, é a melhor recompensa que eu poderia ter. E, mesmo que alguns pacientes tenham dores emocionais muito difíceis e que me exijam muito emocionalmente em alguns momentos, estarei lá com eles para comemorar sua futura melhora e seu retorno à vida, com a máxima liberdade e autonomia que os transtornos mentais sem exceção ceifam.
Se me perguntarem se valeu a pena, diria que com certeza sim! Hoje não consigo me ver trabalhando de outra forma, que tenha tanto sentido para mim profissionalmente, quanto o que faço hoje. Às vezes é difícil sim, como não poderia deixar de ser quando atendemos alguém que está em sofrimento. Mas a recompensa de ver alguém melhorar e retornar à sua vida, com mudanças permanentes de estilo de vida e mais consciente de suas escolhas de vida é indescritível. É um privilégio e uma responsabilidade enorme poder exercer esta profissão.
Fica aqui meu mais sincero obrigado a todos os meus pacientes, por tudo o que me ensinaram e me ensinam até hoje!
Por: Dr. Gabriel Magalhães Lopes